domingo, 15 de janeiro de 2012

A CONVERSA

- Com licença, bom-dia? Posso me sentar aqui? – Perguntou o homem alto, de rosto magro e calejado, como um artista no declínio da profissão.
- Pois não, fique à vontade; - respondeu, de maneira educada, um senhor de rosto e maneiras arredondas.
- Dia bonito não?
- Dia lindo, sempre temos dias assim por aqui...
- Boas férias; têm feito dias maravilhosos mesmo, ah, meu nome é Antero, Antero Prado Boaventura; e o Senhor?
- Meu nome? Hórus! Hórus é um bom nome, eu me chamaria Hórus se pudesse...mas acho que me chamo Paulo, ou Pedro, sempre confundo o decapitado com o crucificado. – Seu rosto libertou com esforço um sorriso asfixiante.
- Ah, o senhor tem uma verve, um humor meio britânico...hum, o hotel tem estado maçante neste quesito, todos os hóspedes sempre tão iguais, velhos demais, jovens demais...
- Está lendo o jornal?
- Sim; mesmo em férias tento acompanhar as notícias...
- Boas?
- As de sempre; veja aqui na capa, o médico que foi morto, você assistiu a televisão?
- Mais ou menos...
- Cara novo ainda, seu carro foi parado quando saia de um banco, deram nove tiros nele, três na cabeça; crime bárbaro; e ele tinha perdido a mulher e a filha a cinco anos atrás, também vítima de assalto, um horror! Devia ter pena de morte para esses desgraçados.
- Nove tiros! Sabe o nome do Médico?
- Está aqui, deixa ver...
- Doutor Pedro Guilherme Agostín e Santana; cirurgião plástico.
- Isso, você leu...
- Não, eu o conheci...
- você o quê? Conheceu ele? Sério?
- Peça um café e largue o jornal amigo, o dia está bonito, o ar suave, estou feliz, por isso vou te contar uma história...

Ela começou há cinco anos atrás. O Doutor Pedro Guilherme teve um dia cheio. Quatro cirurgias plásticas; estava cansado, muito cansado. Sua esposa tinha falado durante todo o percurso que ia da clínica até a casa onde moravam. O Doutor teve vontade de calar a boca da megera com um soco; contendo o ímpeto, apenas passou a mão no bolso do paletó e sentiu o peso da arma que carregava.

- Sempre carrego minha arma comigo – Interpelou a narrativa, o homem obeso que escutava atentamente.
- Armas são importantes, mas o verdadeiro poder da burguesia é a indiferença – o silêncio do segundo homem, fez com que o primeiro continuasse a falar.

Pedro desceu do carro e fechou a porta da garagem, adiantou-se à esposa, sem querer carregar os pacotes que ela sempre trazia. A chave encostou na porta da casa e o médico  percebeu que ela estava aberta, o homem tentou forçar os ouvidos na certeza de que ouviria os discos de rock da sua filha no último volume. Ela sempre aumentava quando percebia sua chegada, na tentativa de fazê-lo perder a paciência.
Silêncio.
Luzes apagadas. Discos e objetos pelo chão. Sua filha não havia saído, sua mãe ligara para ela há menos de uma hora. Barulho abafado no andar de cima. Um ranger, como um gemido abafado. Um grito! Pedro pegou sua arma com mãos firmes de cirurgião. Sua mulher ficou muda, ainda sem entender a situação.

-          Carolina? Carolina? Está ai em cima?
-          Pedro, eu vou chamar a polícia...
-          Não! Deixa que eu resolvo!

Resoluto, o médico subiu as escadas que davam para os quartos.
- Que triste essa história! – interrompeu novamente o homem gordo que agora acendia um cigarro fino e com cheiros cítricos – Um assalto! Mas aqui no jornal não falam nada da família; morreram todos?
- Todos sempre morrem no final – Respondeu suave como quem sussurra uma canção de ninar o estranho homem de rosto triangular. – Eu conheci Pedro...

Pedro Guilherme Agostín e Santana sempre foi um homem difícil e ambicioso. A Medicina foi o coroamento de uma vida destinada a enriquecer a qualquer custo. A Especialidade - cirurgia plástica - o aproximou dos ricos e famosos. Tudo que ele sempre sonhou. O casamento com uma das mulheres mais bonitas e ricas da cidade; dois filhos lindos e saudáveis completavam a fotografia perfeita, ele estava subindo sua montanha pessoal e social.
Alguns anos depois, ele estava descendo.
Com a morte do filho Augusto César num acidente de carro, as coisas começaram a dar errado. O casamento foi o primeiro a apodrecer junto com o corpo do filho; vários casos extraconjugais ajudavam Pedro a humilhar a esposa; que era obrigada a permanecer casada, pelas ameaças do marido e pela conveniência social. A filha Carolina tornou-se a adolescente-problema padrão, entrava e saia de escolas, drogas e orgias com as amigas, escândalos para os jornais.

Toda a história familiar passou pela cabeça de Pedro aos subir as escadas. Será que seqüestraram Carol? Que diabos àquela menina havia aprontado agora? Arma em punho, o médico chegou ao topo da escadaria e observou o enorme corredor; a porta do quarto da filha estava aberta;
- Carol! Você está aqui? Carol?
Silêncio.

Pedro caminhou até o quarto da filha e acendeu a luz. Estava tudo revirado, como se um furacão tivesse passado ali. Onde estaria a filha? Certamente algum namorado...seqüestro...Sua esposa gritava do andar térreo.

- Carol! Minha filha!

Pedro girou o corpo sob os calcanhares e preparava-se para sair do quarto quando, do grande guarda-roupas da filha surge um enorme vulto coberto, gritando loucamente.

A reação do doutor foi instantânea. Dois tiros certeiros. E quando o corpo tombou, quem estava sob o cobertor era a sua própria filha.

Ana Carolina, sua filha estava ali, caída na sua frente. Havia sangue, era um vermelho intenso brotando do pequenino orifício. Sua esposa entrou no quarto, assustada com os tiros e viu a filha caída, ferida mortalmente.

- Meu Deus! – Ele matou a filha? – Antero secou um tanto de suor que começa a escorrer pela papada.
- Matar filhos não é o tipo de esporte que se costuma jogar sem parceiros, se é que você me entende...  – E o enigmático companheiro de Antero continua a falar:

A mãe enlouqueceu e começou a gritar. Pânico, terror. Um tapa no rosto a impediu de surtar.

-          Calma Helena! Foi um acidente! Calma! Vamos chamar uma ambulância.

A mente do Doutor Pedro não estava mais no corpo caído da filha. Ele pensava agora na sua imagem. Um médico que mata a própria filha, mesmo que por acidente, está acabado. Seria o fim. Separação, cassação, arma não registrada. O fim. Num gesto aparentemente despropositado ele colocou a arma nas mãos da esposa.

-          Eu vou pedir socorro, fique calma. – Pedro pegou o telefone e ligou para Rubens, um delegado corrupto que dava proteção à sua clínica e sua casa, mediante pagamento.
-          Rubens, estou encrencado, dessa vez é coisa grossa.
-          Fala ae Doutor, vamos ver como posso te ajudar.

O cirurgião narrou os eventos ao policial e quinze minutos depois o delegado chegava na casa do Doutor.
-          Alguém ouviu algo?
-          Não, não temos vizinhos por perto.
-          E sua esposa?
-          No quarto, dei um comprimido pra ela dormir.
-          A arma?
-          Na mão dela.
-          Alguém mexeu no corpo da menina?
-          Não!
-          Beleza! Traz sua esposa pra cá.

O Doutor Pedro sentiu um calafrio. Sabia das implicações, queria se livrar de tudo aquilo. Pensou na sua ruína; na ruína de tudo que construiu; Pedro tentou acreditar que estava certo, que não teve culpa, que não era justo pagar, mas ele não conseguia; queria parar tudo, se entregar a polícia, mas também não conseguia. O egoísmo, o orgulho, essa herança sombria.

Sua esposa foi trazida ainda sonolenta até próxima ao corpo da filha, a arma colocada em sua mão. Rubens segurou sua boca, depois colocou sua mão sobre a dela, como quando ensinamos uma criança a escrever. Um tiro no pé do doutor; um álibi necessário. A mulher, embora drogada, compreendeu a situação; sua face assumiu um aspecto de terror indescritível. Forçando o braço da mulher o delegado leva a arma até a boca da mulher, afastasse um pouco, embora protegido por sacos plásticos e aperta o gatilho.


Um tiro. Um homicídio, uma tentativa de homicídio e um suicídio. Dinheiro para emperrar as investigações, um ano fora do país e cinco anos morando em outro Estado. Pedro começou a acreditar que tudo tinha sido deixado para traz.

Ele estava enganado.

 O homem sentado na mesa do hotel passou a mão na testa. Era um suor frio e viscoso, como seiva de uma árvore muito antiga.

- Você inventou isso tudo não? Isso tudo é mesmo verdade?
- Quem sabe? Talvez sim, talvez não, talvez nem Deus nem o diabo se importem com nada disso afinal.

O homem estranho levantou-se, sorriu para o companheiro de café e saiu cantarolando uma música antiga: “Once i had a little game; I like to crawl back into my brain; I think you know the game i mean; I mean the game called go insane”
Fim

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