domingo, 15 de janeiro de 2012

NO INTERIOR DA ESTRELA

O murro atingiu o lado esquerdo do rosto, cutilando de leve os lábios, arrancando pequenos pedaços de carne fina e gotas generosas de sangue.

- Um murro é uma antinominia! A mão que bate sempre recebe sua parte de dor!

As mãos continuavam voando sobre a face de Marcondes Faranco, promotor de eventos e jogador de poker amador, a dor continuava indo e vindo como rítmicos movimentos pendulares. Doze anéis dourados, um em cada dedo, reluzentes contra a luz artificial da lâmpada era tudo que os olhos já quase fechados pelos socos podiam ver.

Na pequena sala de um prédio abandonado da periféria da cidade nada além que duas cadeiras. Em uma, Marcondes, preso por algemas, apanhava, na outra, o homem que o surrava sentava de quando em vez para se refazer. Depois de mais uma sessão de socos, o homem de idade avançada, sentou-se para tomar fôlego.

-  houve um tempo em que eu podia fazer isso por dias; mas não hoje, logo vai acabar; fique tranquilo, não estou te espancando por raiva, não pense nisso, é apenas frustração; apenas um velho tolo frustrado.

Marcondes levantou a face desfigurada e tentou focar a imagem do velho à sua frente. Como iria sair dessa? Estava numa situação difícil. Não tinha nada nas mãos; suas fichas estavam para acabar; a mesa estava alta, suas cartas eram suas inimigas mais ferrenhas; que fazer nessa situação? Blefar ou pagar?
O velho continuava seu monólogo.

- Olhe para as minhas mãos. Dez anéis. Dez anéis de ouro puro. O mais puro que o dinheiro consegue comprar. Sabe de onde vem o ouro? Dizem que ele nasce quando as estrelas estão morrendo; quando o hidrogênio acaba e outras reações químicas começam a acontecer no interior daquela fornalha imensurável. Pense comigo, uma estrela morreu para que eu tivesse aqui um pedaço do seu cadáver! Eu, um reles e miserável ser humano, tenho nas minhas mãos o cadáver de uma estrela.

O velho levantou-se e deu dois socos na boca de Marcondes. Sua boca transformou-se em carne ensaguentada. Malaquias, o ancião,  voltou-se a sentar.

- Eu sou delegado. Delegado sabia? Não, não sabia, você jamais iria se engraçar com a mulher de um delegado não é? Não tem peito para isso? Apenas pensou que era alguma idiota rica que te daria boa vida não é? Minha mulher tem trinta e um anos! Mas não parece não é? Conheci ela quando tinha vinte e seis. Aqueles cabelos loiros, parecem filamentos de ouro voando sobre o céu azul; brilhando como uma estrela.

Marcondes deixou sua cabeça pender para baixo, sua memória avivou-se lembrando de como conhecera Elisa, a esposa de Malaquias. Ele estava realizando um evento quando ela surgiu na sua frente, linda, cheirosa, seu sorriso era único, esculpido em marfim alvíssimo, seus olhos lembravam o mar. Para Marcondes seria apenas uma de suas tantas conquistas. Aproximou-se sorrateiro, jogou o jogo batido da sedução e ela entregou-se a ele como Tebas caíndo sobre o julgo de Alexandre.

Contudo, Marcondes descobriu que ela era casada. E rica. Pensou em sumir da vida dela, depois, em sumir com ela, por fim, em ganhar algum dinheiro. No final, queria apenas continuar possuindo aquele corpo generoso e confiou nas promessas da amada de que estaria se separando do marido.

O soco que o atingiu na nuca o arrancou de suas lembranças. Marcondes não teve tempo de descobrir o tamanho da enrrascada em que se meteu. Foi sequestrado por um carro da polícia, levado para algum lugar e agora apanhava e não comia nem bebia nada havia mais de vinte e quatro horas. Sabia apenas que o homem à sua frente era o marido de Elisa, que era delegado da polícia federal, que era importante e era rico, muito rico, provavelmente uma riqueza fruto de falcatruas, como todo bom policial brasileiro.

- Sabe jovem; não me importo com a traição de Elisa, não mesmo, olhe para mim, tenho sessenta e oito anos; não espero que minha jovem esposa não procure em algum lugar um corpo menos asqueroso que o meu para dar vazão às suas fantasias. Mas ela ficou descuidada, vocês começaram a andar por aí, a serem vistos e quer saber, um homem como eu, no fim de tudo, só vale a sua reputação. Eu magoei um monte de gente grande por aí, fiz chantagem, explorei, enfim, usei minha posição para enriquecer, porém, mais que isso, usei para entrar no mundo deles. Queria estar lá, no centro da estrela, vendo todo aquele ouro reluzente dos muito ricos; comprei minha passagem com muito cuidado, mentindo, ajudando, bajulando, assim podia me sentar entre eles, seja no Municipal, seja no jantar mais reservado para algum embaixador, eu estava lá. Minha mulher era meu pedigree, meu bichinho de estimação para fazê-los ter um pouco de inveja de mim, enquanto eu fingia não ouvir os sussurros que perguntavam “quem é ele?” quando eu aparecia em alguma recepção. Você começa a entender rapaz? Eu vou te matar, e voltarei para casa, dormirei com Elisa, vou fazer amor com ela, vou dar-lhes uns tapas e depois sair para comprar algumas roupas bonitas para ela; mostrarei a todos como ela continua sendo minha enquanto você será apenas um punhado de ossos boiando em algum rio desse nosso Brasilzão imenso.

Malaquias levantou-se e abriu a porta, saindo, Marcondes sabia que havia chegado sua hora. Sua mente de jogador analisou toda a sua situção novamente: Não tinha nada nas mãos; suas fichas estavam para acabar; a mesa estava alta, suas cartas eram suas inimigas mais ferrenhas; que fazer nessa situação? Havia apenas uma única opção, o bom e velho blefe, o maior que ele já teria que usar. Havia aprendido desde cedo que ninguém deve blefar no vazio. Não, era preciso saber a mão do adversário. Se a mão fosse boa, ele pagaria, blefar bem apenas quando se conhece o adversário, sua mão não importa nunca, apenas a mão do outro, e o velho Malaquias havia dado a ele, tudo que ele precisava, conhecia agora o ponto fraco do seu adversário. Sabia o que ele tinha nas mãos.

O velho homem de anéis dourados voltou pela porta envelhecida, tranzendo uma grande faca triangular nas mãos. O cabo era preto, sem detalhes, a forma era a usada pelos militares, produzia um corte impossível de ser suturado e que matava rapidamente por hemorragia.

- Enfim, menino, você pode descansar dessa vida de sofrimentos.

Marcondes soltou uma grande gargalhada. A reação fez o velho parar, estranhando a súbita mudança de humor de jovem que até então nada emitia além de rugidos de dor.

- Eu vou descansar, mas você, velho, seu inferno vai começar! Tantos anos tentando não ser motivos de chacota, e agora, agora... – O rapaz soltou nova risada.

Malaquias avançou sobre o jovem com ímpeto assassino, a faca tocou de leve o peito da vítima, perfurando de leve, mas algo, talvez um sentimento de auto-preservação o fez deter o golpe mortal e perguntar:

- Que estupidez você está falando?

Marcondes calculou suas palavras, poderiam ser suas últimas e então falou:

- Você pensa que sou um aproveitador? Que queria apenas me divertir com sua mulher? Está enganado. Eu queria o dinheiro dela, seu dinheiro. Sei tudo sobre vocês e planejei tudo bem demais (isso, primeiro minta bastante). Só não contei com a sua capacidade de me localizar tão rapidamente, você realmente é muito bom (massageie o ego deles); mas sempre tenho um plano de contigência, por isso, ao me matar, você vai estar se matando também. (semeie uma dúvida bem grande).

O velho Malaquias era escolado. Já tinha visto de tudo na hora da morte. Algumas vitimas choravam, outras riam, algumas blasfemavam e mostravam uma coragem que não haviam demonstrado em toda a sua vida. Mas poucos, muito poucos mantinha a razão e eram capazes de dialogar com a morte. Esses mereciam ser ouvidos.

- O que você quer dizer com isso?
- Simples. Em algum lugar, alguém está com fotos e vídeos meus e da sua esposa, fazendo coisas, você sabe que tipo de coisas, a cada três dias eu ligo para essa pessoa, não rastrei meu celular, ligo de algum orelhão; da nossa grande cidade; dese brasilzão imenso; a pessoa ouve, e então espera mais três dias, caso eu não ligue, as fotos e vídeos irão para todas as televisões e revistas da cidade, dessa forma, além de ficar famoso como o grande corno da cidade, você será o suspeito número um pela minha morte.

- Desgraçado! – O velho delegado saltou tal qual um felino e passou a faca pela face de Marcondes, a testa abriu-se numa ferida que encheu seus olhos de um tom vermelho muito parecido com o sumo das chardonnay. O promotor de eventos sacudiu a face e baixou a cabeça; essa era a grande hora; o momento em que mentira e verdade se misturam tão profudamente que torna-se impossível separá-las. É preciso mentir de tal maneira que até você passe a acreditar, acreditar verdadeiramente, acreditar que está salvo e que esse alguém em algum lugar realmente existe, traduzir a crença em cada detalhe do seu rosto, relaxar cada músculo e se sentir no comando. Era isso, ou a morte.

Malaquias sentou-se. Sabia que havia uma possibilidade de que tudo aquilo fosse verdade. Pensou nos sorrisos indiscretos daquelas pessoas malditas que iriam cuspir na sua cara, execrá-lo, esquecê-lo. Toda sua vida tentando fazer parte. Terminaria como corno. Não, corno não!

- Não acredito em você! – falou duramente.
- Nem eu em você! – Ouviu a resposta

Silêncio.

Quatro meses depois, Marcondes Faranco foi apresentado a Maria Matta Brangaça e Albuquerque. Casada com o dono de uma construtura. Rica, muito rica.

- Alô, Tô te enviando as fotos e os vídeos. Já sabe, a cada três dias. – e desligou o telefone.
Bem -  sussurrou consigo - Não se pode blefar em todas.


FIM.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário